quinta-feira, 3 de outubro de 2013

Doulas preservam a visão ancestral do parto


Elas auxiliam as mulheres a se prepararem para um momento único: 
o de dar à luz a um novo ser.

ANA MARIA MORAIS

Elas mantêm uma tradição quase esquecida na atual configuração da vida moderna, na qual o parto se tornou um ato a mais na agenda corrida do dia a dia, tanto dos obstetras quanto da maioria das futuras ma- mães. Elas seguem os passos daquelas que aqueciam a água para as compressas, que faziam o chá, que transitavam com calma pela casa, dando suporte à mulher em trabalho de parto e à família que aguardava, enquanto a parteira lidava com a vinda de um novo ser ao mundo. Estas cenas podem ser revistas em gravuras antigas que mostram partos naturais.

Desde a década de 80, com um movimento iniciado entre alguns obstetras e outros profissionais da saúde pelo resgate do parto natural, elas ganharam o nome de doulas (em grego, mulheres que servem) e têm como objetivo propiciar à mulher a capacidade de conduzir o próprio parto, oferecendo apoio físico e emocional para ajudar a amenizar as dores e as ansiedades.

Ao chegar em uma clínica no Setor Nova Suiça para entrevistar três destas profissionais, que, apesar das restrições de obstetras e gestantes, têm aumentado consideravelmente e tido cada vez mais adeptos em Goiânia, senti no ar o clima acolhedor e sereno do ambiente que prioriza o ser humano e suas emoções. A anfitriã, a catarinense Marcela Flueti, doula e naturóloga (quem faz Naturologia estuda terapias alternativas, como florais de Bach, ar- gila e massagens) pela Unisul, de Florianópolis (SC), começou logo com a sua simpatia e sor- riso enormes, a contar sobre seu parto domiciliar, feito em Campinas há quatro anos. “Quando senti a primeira contração, pensei que fosse dor de barriga”, relembra, rindo. Após oito horas em trabalho de parto, quatro delas passadas sob o chuveiro, e acompanhada por uma doula, um obstetra e pelo marido, Marcela, que já havia acompanhado vários partos, terminou o seu em estado de puro êxtase, com seu filho Miguel nos braços.

Cesáreas necessárias x desnecessárias

“Foi inculcada em nós, mulheres, nas últimas décadas, a ideia de que não somos capazes de dar à luz naturalmente. E a isto se junta o medo do desconhecido. Por estas razões, mui- tas mulheres têm deixado de vivenciar um acontecimento único e transformador”, ana- lisa a doula e educadora física Alessandra Amorim, uma das pioneiras nos acompanha- mentos de partos em Goiânia, área que surgiu por aqui no começo do século 21. “A cesariana salva vidas, mas ela não deveria ser feita desnecessariamente”, acrescenta. Ela sabe bem que do está falando.

Na primeira gravidez há oito anos, Alessandra, doula, praticante de yoga, fez o que pôde para que a filha Beatriz, que estava pélvica (sentada), encaixasse e pudesse nascer por vias naturais. Não conseguiu. Mesmo assim, vivenciou todo o trabalho de parto e teve a filha em uma cesariana. Necessária, claro. Na segunda gravidez, foi o momento em que Alessandra pode quebrar um mito: a de que a mulher que se submeteu a uma cesárea terá, obrigatoriamente, que ter todos os filhos por vias cirúrgicas. Há um ano e cinco meses, ela teve Gabriel em parto natural vertical (cócoras) num apartamento da Maternidade Modelo e considera que foi uma experiência extremamente gratificante. O vídeo do trabalho de parto e o nascimento do bebê podem ser conferidos no blog da educadora: partoconsciente.com.br.

Agora, quem tenta seguir os passos da doula é Carol Faccioli, grávida de oito meses do segundo filho e vítima de uma cesariana indesejada (e talvez desnecessária) no parto do primeiro filho. “Quando falei para a minha mãe que queria ter um parto normal, ela disse: ‘Carol, temos que usar a medicina a nosso favor’”, conta, acrescentando que a mãe teve três cesarianas. Ao expressar a mesma vontade à obstetra, ouviu:“Você quer parir igual a índio?”.

Mesmo assim, Carol aguardou o rompimento da bolsa e o começo do trabalho de parto antes de ir à maternidade. “Quando pensei em pedir para que olhassem se eu havia dilatado, já me aplicaram a anestesia e em questão de minutos meu filho nasceu”, relata. E o descaso não parou ali. Além de não ter podido amamentar assim que o filho veio ao mundo, como queria, ao ir para o quarto ela e o marido não receberam nenhuma assistência das enfermeiras nos primeiros cuidados com o bebê.“Eu achei que soubesse, mas quando tive meu filho nos braços, vi que não sabia nem trocar fraldas!”, confessa.

Carol está se preparando para ter um parto humanizado. Orientada por Alessandra, tem
feito exercícios de yoga e perinatais específicos que facilitam o processo de parturição. Além disso, terá o acompanhamento do obstetra Luiz Carlos Pinheiro, médico pioneiro de partos na água em Goiânia e incentivador do parto de cócoras. “Meu marido está super empolgado e, apesar das restrições da minha mãe, tenho conversado muito com a minha avó, que teve parto normal e tem me apoiado”. Desta vez Carol sabe que, se acabar numa cesárea, é porque foi absolutamente necessária. E, de acordo com estudos realizados em todo o mundo, o índice de cesarianas é reduzido em cerca de 60% quando há o suporte de uma doula.

Até mesmo as intervenções, como a analgesia e a episiotomia (corte no períneo, que causa dor e dificulta o retorno à vida sexual), são diminuídas pela atuação destas profissionais. Pode ser comprovado em qualquer literatura médica que as contrações uterinas, responsáveis pela liberação do hormônio ocitocina, contribuem para a descida do leite e diminuem a incidência de problemas respiratórios, como a adenóide, além de a taxa de depressão pós- parto ser menor em mulheres que não fizeram cesariana de hora marcada.

Parto humanizado x intervenções

Alessandra toca em um ponto sensível, que tem sido motivo de polêmica entre obstetras: o termo “parto humanizado”. “Tenho visto médicos e pacientes chamando de parto humanizado cesarianas eletivas (de hora marcada)”, se admira.“Usa-se o termo ‘humanizado’ quando a mulher é protagonista do seu próprio parto, e isso não ocorre em cesarianas, pois as parturientes estão numa postura passiva. “O parto humanizado resgata a participação ativa da mulher, em que seus desejos são respeitados, é menos intervencionista e as mulheres têm lembranças positivas de sua experiência”, afirma.

Aí entra-se numa outra questão: a crescente medicalização do parto e a sonegação de informações importantes relacionadas ao ato de parir e nascer naturalmente, atitudes que têm atingido até culturas totalmente diferentes da nossa. Foi o que aconteceu com uma aldeia Guarani de Santa Catarina (sim, ainda existem índios no Sul do País). “Muitas mulheres estavam migrando para maternidades, duvidando da segurança de se parir na aldeia”, relata Marcela, que então cursava Naturologia e participou de um projeto dentro da faculdade para o resgate do parto na aldeia. “Mostramos às índias que era um processo seguro e que, se acontecesse alguma intercorrência, dava tempo de chegar à maternidade.”

E é exatamente este medo, o da dor e do que era antes natural e agora se tornou desconhecido, que tem contribuído para os altíssimos índices de cesarianas encontrados em nosso País. Para Fernanda Pinheiro, fisioterapeuta, doula e educadora perinatal, somente a disseminação de informações irá possibilitar à mulher resgatar esta capacidade cada vez mais subestimada.

“Quando as mulheres ficam sabendo das vantagens do parto natural, da ocitocina, que é fundamental para a relação mãe e filho, para a descida do leite, elas começam a repensar o parto que querem para elas”, comenta. Alessandra cita as pesquisas científicas feitas em diversas partes do mundo sobre a ocitocina, tendo como pioneiro o obstetra francês Michel Odent, que o qualifica de “hormônio do amor”.

No documentário O Renascimento do Parto, Odent chega a relacionar a crescente violência em todo o mundo ao aumento das cesarianas eletivas. Pelas mesmas razões, ele é um crítico ferrenho do hormônio sintético, injetado em grandes doses nas mulheres para acelerar o trabalho de parto, sobretudo na rede pública de saúde. Segundo ele, a humanidade ainda não sabe as consequências que podem advir desta prática e assegura que ela pode ser responsável pelo desenvolvimento de graves doenças de cunho psicológico.

“O parto vivenciado traz um contato com o eu mais profundo, um caminho de autodescoberta, que inclui momentos de medo, vitória, força, superação e a maioria das mulheres não se sente preparada para suportar e manejar o trabalho de parto”, teoriza Alessandra. Para este momento de refúgio íntimo e de transcendência, quando afloram todas as emoções é que a doula presta um suporte fundamental, tanto na preparação como durante e após o parto. “A presença, o cuidado, um abraço e palavras reconfortantes auxiliam”, afirma.

As doulas sugerem posições mais confortáveis, fazem massagens, informam a mulher sobre o andamento do trabalho de parto e as tranquilizam com palavras de carinho e incentivo. Alessandra diz ainda que este é um momento em que a mulher “vaza”, tanto pelo sangue que se esvai, quanto pelo leite que apoja e também emocionalmente. “Por isso, ela precisa de alguém que a ajude a liberar e que seja um ponto de equilíbrio”, reflete. Elas defendem também a presença do companheiro na sala de parto ou, na ausência dele, de alguém de confiança da parturiente. “Ter ao lado uma pessoa do convívio íntimo tranquiliza a mulher”, afirma Fernanda.

Aprendendo a ser mãe

O trio faz questão de ressaltar que as doulas não interferem em atos privativos dos médicos, como a ausculta ou o toque para verificar a dilatação, nem em funções das enfermeiras obstétricas, como a medição da pressão arterial. “A doula apoia a mulher e a ajuda a atravessar este rito de passagem, que certamente irá refletir na adaptação de sua nova vida”, conceitualiza Alessandra.

E esta adaptação nem sempre é fácil. “Enquanto a mulher está grávida, ainda dá pra viver os contos de fadas das revistas, mas quando ela se vê com um bebê que tem cólicas, que não a deixa dormir à noite, que chora sem que ela saiba a razão, muitas vezes a mãe se desespera”, observa Marcela. “É um novo ser que irá desafiá-la e ela terá que aprender a ser mãe com esta relação, porque não existe manual que ensine a ser mãe, já que cada ser é único”, completa Alessandra.

Nestes momentos, a doula também presta um serviço inestimável, oferecendo apoio no pós parto. “Muitas vezes, a mãe precisa apenas ser ouvida, precisa de alguém que prepare um chá para ela, de alguém que diga, ‘chore, pode chorar que faz bem’”, comenta Marcela, complementando que a doula, assim como os obstetras defensores do parto humanizado, está sempre disponível para a paciente, independente do dia e horário. “Defendemos nascimentos respeitados, amorosos e com liberdade, pois acreditamos que este é o caminho de uma vida plena, saudável e uma Terra mais pacífica”, finaliza Alessandra.

Fonte: O Hoje - Goiânia, domingo, 12 de maio de 2013